Mad God – O suprassumo do Stop Motion

Caso você decida assistir Mad God sem saber nada, é bem capaz que na cena inicial pense que se trata de um filme convencional, mas bem estilizado, para pouco tempo depois perceber que está vendo stop motion. Sim, aquele estilo de animação normalmente associado ao uso de massinha, ou claymation.

O filme realmente se utiliza dessa técnica, mas com boa parte dele sendo em puppetoon, ou animação com bonecos. Tudo isso em go motion, uma variação do stop motion co-desenvolvida por Phil Tippett, o criador de Mad God. Ela basicamente consiste no uso de um software que faz finos braços de metal moverem o boneco frame por frame.

Sei que estou indo por um caminho muito técnico no destrinchar desse filme, mas acredito que ter esses conhecimentos de forma prévia valide muito o trabalho feito no longa, assim tornando o espetáculo visual ainda mais impactante. Por vezes um conhecimento avançado pode causar um efeito adverso, mas em Mad God isso realmente eleva a experiência. Eu por exemplo edito vídeos a um bom tempo, estudei sobre os mais variados estilos, e ver tudo isso em tela me deixou boquiaberto. É um nível tão absurdo de perfeccionismo que não existe saída se não bater palmas ao final da animação.

Sim, eu adorei Mad God. E não se preocupe, eu vou colocar aqui links de alguns curtas que demonstram as técnicas mencionadas, caso opte por assistir logo de cara. Ainda assim, antes de embarcar nessa jornada, recomendo ler o texto por inteiro. Infelizmente o filme não é aconselhável para todos, sendo inclusive classificado como terror devido a todo o desespero apresentado em cenas verdadeiramente grotescas. Bonitas pelo lado técnico de criação, fantásticas na fotografia, e necessárias ao ponto central da obra, mas ainda assim terrivelmente nojentas.

Mad God ao meu ver possui algumas interpretações “fáceis”. A primeira é que se trata de algo similar a Divina Comédia, onde um personagem desse pelos andares do submundo, experienciando assim os terrores do pós-morte, com diferentes graus de tortura a cada andar, que envolvem coisas como ser canibalizado, escravidão, cadeira eletrica, entre outros, num loop eterno com direito a fabrica de corpos para se manter o ciclo.

A outra é que temos uma série de cenários, a princípio desconexos, que demonstram o pior da humanidade. Guerra, luxúria, capitalismo, violência, entre outros. Alguns como o foco central dos “andares”, e outros como pequenos pedaços aqui e ali. Mas que no geral são todos terriveis. O que pode no fim implicar em ambas teorias estarem corretas, assim gerando e amplificando um terror bastante existencial.

Porém, tudo se inicia com uma referência à famosa Torre de Babel. Disso podemos tirar um certo teor religioso, talvez nos fazendo pender ao lado “Inferno de Dante”. Ao mesmo tempo que só o existir da torre pode criar novas ideias sobre o que seria o plot deste longa. Como por exemplo ela sendo a conexão entre céu e terra ou o início da humanidade, separada, o que pesa pro outro lado dos cenários, e pode até modificá-lo, não para “o pior da humanidade”, mas momentos históricos, visto que em certo momento é fácil notar referências ao egito antigo ou segunda guerra mundial, numa ordem bem crível, mesmo que incompleta.

O problema aqui é que o “fácil”, como já deu para notar, é bem complicado. Mad God é um filme difícil de interpretar, e talvez sua experiência com ele seja completamente diferente da minha, isso se meu texto não o influenciar a interpretar tudo como já dito, no máximo misturando todas as minhas ideias propostas. Se for o caso, peço desculpas. Esqueça o que falei e tente absorver cada detalhe, com muita atenção, como se fosse você a escrever essa análise posteriormente, assim criando sua própria teoria em cima desse “deus louco”. Caso, obviamente, você consiga aturar o longa.

Repito, eu adorei Mad God, ao ponto de dar nota máxima. Acho uma das experiências mais únicas que já tive, e é exatamente por isso que não consigo ver todos gostando. Para começar, o filme é mudo em fala e tudo tem de ser interpretado justamente como falei. Analisando ao máximo, cada detalhe que conseguir captar. Algo auxiliado pelo ritmo lento, que ao mesmo tempo pode tornar o filme algo maçante, especialmente próximo ao final. E obviamente ainda tem o que falei do grotesco. O filme é como se você tomasse vários socos no estômago. Realmente pesado. Já as técnicas que tanto elogiei talvez façam você estranhar a obra, justamente por ter uma mescla tão grande, por vezes até se utilizando de atores reais.

Claymation

Acho esse um bom ponto para retornar a elas, justamente as técnicas. Então vamos brevemente a uma quase aula para você entender melhor Mad God. Claymation é o mais fácil. Eu recomendaria assistir Wallace & Gromit, mas pela dificuldade de achar fora de streaming, e puxando para um exemplo que demonstra como massinha pode ser usada para algo grotesco, sugiro assistir o curta Chainsaw Maid. Mas esteja avisado, o conteúdo é para adultos.

Na verdade, eu recomendo ver quase todos os stop motions do Takena Nagao (18+). Indo para um lado mais dramático temos Memorable, e da Aardman, os criadores de Wallace & Gromit, um de pegada mais adulta é Babylon. Um básico para pegar o estilo por meio de curtas e já indo um pouco mais na direção perturbadora e brilhante de Mad God.

Puppetoon

No lado de puppetoon eu adoro o longa Coraline, e indicaria principalmente o making of dele. Na verdade o making of de qualquer filme com essas técnicas seria um must para maior entendimento, mas em prol de tornar as coisas mais fáceis, indico o dramático Aria, o qual demonstra impecavelmente como dá para criar histórias adultas e impactantes com stop motion.

Puppetoon talvez seja o estilo mais comum dessa arte, ao menos nos tempos atuais. E apesar de Aria ser literalmente meu curta de stop motion favorito, aqui também cabe várias outras recomendações. Tem o criativo Lost & Found, onde os personagens são amiguchis, bonecos de crochê. O ótimo An Ostrich Told Me the World Is Fake and I Think I Believe It, que inclusive mostra parte da criação desse tipo de curta de forma intrínseca ao enredo. O perturbador Jabberwocky, que vai lhe assombrar pela eternidade. Também adoro o dramático, mas belo, Sister. E se você puder ver o dificílimo de achar Gon, The Little Fox, não perca a chance.

Go motion

Para go motion o making of de certas cenas dos filmes do próprio Phil Tippett seria uma ótima ideia. A cena dos AT-AT na neve em Star Wars, ou talvez o ED-209 ao final de RoboCop. Sim, nessas partes usaram stop motion, com detalhes alterados no pós e uso de tela verde, o chamado chroma key. Algo inclusive utilizado também em Mad God, porém mais para os humanos.

Já partindo novamente aos curtas, Animist faz ótimos vídeos com isso. Ele tem um sumário de stop motion com bonecos que mostra os braços usados no go motion, além de alguns exemplos de FPS e tempo real que leva na criação. Porém meu make favorito dele é o de Akira, onde dá para ver um pouco de criação de efeitos especiais com stop motion. Fora isso, muitos curtas de stop motion usam do go motion, mas como nem sempre e divulgado fica complicado listar vários aqui.

Animatrônicos

E não acabou aqui. Lembra quando falei dos humanos no filme? Tem cenas obviamente tradicionais, onde eles interagem com animatrônicos, ou ao menos imagino ser isso. Não é stop motion, mas é válido mencionar. Nesses eu sugiro ver, ou rever, Família Dinossauros. Lembram desse? Se não o filme O Cristal Encantado. No primeiro todos os dinos são animatrônicos, e no segundo os abutres e outras criaturas grandes, com demais personagens sendo fantoches ou bonecos. Por vezes os “robôs” são vestidos por atores, com partes como o rosto sendo o lado eletrônico, que é o que acredito ocorrer em Mad God, numa cena bem específica. Infelizmente não conheço um curta com essa técnica que se assemelhe ao que estou comentando.

Vale também dizer que o personagem principal de Mad God, e talvez outros bonecos, também foram feitos em escala real para certas cenas, como a do elevador. Algo que novamente podemos remeter ao Cristal Encantado, visto que o principal é simplesmente um boneco grande, como pode ser visto logo no começo do longa.

Pixilation

Mas também existem eles realmente em stop motion. Sim, pessoas. Essa técnica se chama Pixilation, e um ótimo exemplo é o inacreditável Tetsuo: The Iron Man. Nesse estilo as pessoas, e por vezes objetos, se movem frame por frame, dando um efeito similar a um stop motion mais antigo. No Tetsuo isso é bem visível nas cenas rápidas ao longo das ruas japonesas. Outro que gosto muito é o mega premiado Luminaris. Ambos fenomenais.

Recomendo também assistir aos curtas do Norman McLaren, em especial A Chairy Tale e Neighbours. O clip musical Her Morning Elegance também demonstra pixilation de forma moderna e bem divertida. E vale dizer que nem toda pixilation é só com humanos. No Chairy e no Tetsuo já podemos ver um pouco disso com objetos. Outros muito bons são os curtas do PES, em especial o premiado Fresh Guacamole. Basicamente objetos entram como pixilation.

Silhouette animation / Cutout animation

Temos também silhouette animation, ou stop motion com sombras. Para esse recomendo ver o longa The Adventures of Prince Achmed, mas para facilitar com curtas, veja Aschenputtel, ou Cinderella, de 1922. Mesma diretora de Achmed, Lotte Reiniger. Inclusive todos os curtas dela são fantásticos. E Cinderella demonstra perfeitamente o estilo. Nele se usa cutout animation, ou seja, papel recortado, para assim criar as silhuetas. No caso de Mad God é um pouco mais teatro de sombras, misturando o rústico com o moderno.

Apesar do papel ser o material primário, muitas produções usam de luz para criar efeitos diversos, como os borrões em Mad God, e outras coisas como tinta, giz ou até mesmo fogo podem criar efeitos lindos, que destoam causando algo mais “mágico” a cena. Fora os curtas da Lotte, recomendo os do Michel Ocelot, e também seus longas, Princes and Princesses e Tales of the Night. E se quiser ver cutout animation, sem as sombras, Fantastic Planet é simplesmente perfeito, apesar da técnica quase imperceptível. Um dos meus filmes favoritos. Os filmes do Yuri Norstein também são outra bela pedida.

Certo, você consumiu tudo isso, mas não está pronto. Talvez nunca esteja, justamente por ser este filme. Completamente maluco, que muitos vão parar de ver em poucos segundos ou talvez aproveitar de forma hipnótica, quase que como estando em delírio, sem realmente entender o mínimo que seja. Pois até quem é o deus, do título veja só, não fica claro. Mesmo tendo vários candidatos. Mas nisso, eu tenho uma teoria preferida. O deus maluco é simplesmente Phil Tippett. Essa é uma obra prima e eu recomendo que veja, que experimente, Mad God.

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