Jigokuraku – A Jornada Pelo Inferno Celestial

Esse é um caso engraçado. Eu estava atrás de novos animes pra assistir, e queria algo mais recente. Não necessariamente do mês em que estávamos, mas algo superior aos anos 2000 digamos. E apesar da minha insistência para uma série finalizada, me recomendaram tantas vezes Jigokuraku que eu resolvi assistir, mesmo com a produção em andamento.

Talvez essa insistência fosse por ser uma adaptação pelo queridinho estúdio Mappa, de Jujutsu Kaisen e Chainsawman, entre outros. Ou quem sabe era mais uma inclinação para coisas como “samurais e ninjas”, “violência” ou “battle royale”, que costumam ser elementos bem apreciados atualmente.

Eu por outro lado, iniciei o anime com um pé atrás, com medo de um novo Goblin Slayer ou de algo super genérico devido ao lance de battle royale. Mas em poucos segundos, eu admito, estava fisgado. O medo ainda batia, mas o anime era relativamente bonito e todo o início sobre execuções e a luta de Gabimaru me animou. Com ele e a Sagiri já me conquistando bem cedo.

À medida que o anime seguiu, porém, eu me via mais exausto. Muitas cenas legais, com destaque a luta contra Rokurota e a fauna e flora bizarra da ilha. Mas com muitos pontos que me incomodavam. Existiam alguns cortes extremamente bruscos e certos personagens tinham tão pouco tempo em tela que eu me perguntava se não existia corte de conteúdo. Não só transições estranhas, mas literais trechos não adaptados para caber tudo em 13 episódios.

Veio então o hiato, dito por problemas internos na Mappa envolvendo crunch de funcionários. Eu dei um tempo no anime e quando voltei dei play na parte errada. Uma conversa na floresta com um personagem que ainda não tinha visto. Nada de spoilers, mas foi nesse ponto que pensei “quer saber, vou é ler o mangá”.

Parte do motivo foi essa insatisfação com o estúdio, nesse lance do crunch, por mais que outros provavelmente façam o mesmo. Triste, eu sei. Mas o fator maior foi que eu sempre preferi ler mangás e eu já tinha folheado o mesmo nesse tempo de hiatus, até a parte da já mencionada luta com Rokurota.

Nessa comparação inicial entre original e adaptação, notei que o anime não fez tantos cortes como imaginava. Tem sim momentos excluídos, apesar de poucos, ou alterados. Não em prol de reduzir tempo, mas sim para colocar a obra mais acessível. Ou em outros termos, foi retirada nudez e gore.

Vale notar que apesar do anime ser bonito, o mangá dá de 10 a zero. E nesses momentos de nudez e gore eu acho que temos algumas das cenas mais bonitas, em algo bem surreal e muitas vezes mais impactante. No mais, esses detalhes escalonam ao decorrer que a obra progride, e apesar deu não achar ruim a decisão para com o anime, eu não consigo deixar de olhar a ausência desses elementos como algo que diminui qualidade.

Sim, eu já argumentei várias vezes que fanservice em excesso pode prejudicar uma obra, mas nesse caso são pontos, em sua maioria, bem encaixados. Sexo mesmo é muito importante na trama, por mais que soe estranho falar isso. E o gore faz o papel de ampliar o impacto das cenas, além de criar momentos interessantes onde personagens se olham e enxergam a morte. Fora todos os momentos surreais que se utilizam desses elementos.

Quanto aos cortes bruscos e personagens com pouco tempo em tela… isso é idêntico no mangá. Com a diferença que estamos falando de algo que claramente foi pensado para páginas, e que justamente por ser adaptado tão fielmente acaba por falhar em adaptar. E digo isso, pois além de ficar estranho em tela, uma boa adaptação não tem medo de alterar a ordem, criar novos elementos ou experimentar em cima do original.

Por vezes é bom você adaptar cena por cena. Mas imagina uma situação onde no mangá temos 3 personagens lutando, troca pra fulano morrendo em outro canto da ilha em uma página, e troca pra outros 2 andando pela floresta. Essa parte pode fazer sentido no mangá, e vai ter impacto. No anime isso vai ser quase um flash e vai ficar super estranho.

Isso é só um exemplo simples, mas é justamente o problema. Muitas coisas ocorrem simultaneamente e o autor por vezes muda a ordem cronológica e depois volta a cenas que meio que já acabaram, se é que dá para entender. E o anime não deveria tentar fazer o mesmo à risca, até porque esses elementos se complicam mais à medida que se avança no enredo.

Outros pontos relacionados a isso de adaptar podem vir do enquadramento, das cenas surreais e até mesmo diálogos, em pontos que às vezes olho e me pergunto se é possível realmente transcrever de uma mídia a outra de forma tão crua, ou se é possível adaptar ou alterar para algo condizente.

Pode não parecer, mas Jigokuraku é uma experiência bem única, principalmente na ideia da ilha que mistura elementos religiosos, étnicos, biológicos e assim vai. Ao nível que eu colocaria o diálogo, entre todos, como o detalhe mais complicado de se adaptar.

Por capítulos, sim, vários, o autor para a ação para justamente explicar toda a mitologia do mundo. Algo que se repete várias vezes, visto que cada personagem tem sua interpretação. Coisas que envolvem budismo, xintoismo, artes marciais e muito mais. Onde alguns termos são entendíveis somente ao ler notas de rodapé ou via glossário ao final do capítulo.

Para alguns isso pode soar chato, e com certeza não é boa toda essa exposição ao adaptar. Mas eu diria que é fundamental e um dos melhores elementos de toda a trama. O autor Yuuji Kaku claramente tem conhecimento sobre os assuntos e consegue misturar tudo muito bem, adicionando um toque novo e elevando essa mescla ao vale da estranheza. Onde figuras comuns como budas ou criaturas como peixes acabam se tornando uma visão de terror etéreo.

Ao final do mangá o nome Hell’s Paradise vai estar mais do que justificado. Com algumas ilustrações lindas, que qualquer um olharia e pensaria imediatamente na representação perfeita de uma mescla entre céu e inferno, só que da forma mais louca e grotesca possível. E ao mesmo tempo com uma beleza absurda e estranha, que tanto combina com a ideia de algo que não possa ser visto ou compreendido por olhos mortais.

No mais, a obra como já dito tem muito sexo, em todos os sentidos. O ato de copulação faz parte da linha de raciocínio a qual envolve Yin e Yang, e ao mesmo tempo a obra dá significados mil ao gênero. Não somente masculino e feminino, mas falando de neutro, bisexual, gay, poliamor, andrógeno e basicamente qualquer forma de amor ou de se sentir como pessoa. Com uma ênfase elevada na transexualidade. O que é algo que nunca imaginaria da obra que no começo me pareceu “ninjas e samurais” apenas.

E se isso já não fosse wholesome, temos conversas sobre o papel da mulher na sociedade, racismo, classe, abuso, e assim vai. Todos de forma muito bem colocada. Nem tudo vai estar em foco tão direto como o amor ou a aceitação, mas ainda assim é ótimo ver temas tão atuais em pauta.

E ainda assim é “ninjas e samurais” pra caralho! A ação é muito boa e todos os personagens têm estilos únicos bem coreografados. Mesmo os milhares de Asaemon, que são os samurais nesse mangá, tem formas diferentes de empunhar a espada e usam de técnicas únicas. Que junto das dificuldades causadas pela ilha fazem cada embate ser memorável.

Ninguém é overpower. Nem mesmo o “número 1 Asaemon”, ou “o lendário ninja” ou “o grande líder bandido”. Tem títulos e mais títulos. Poderes fodas pra caralho, e todos são um absurdo em combate. Mas ninguém é overpower mesmo. Com vários morrendo em segundos, numa obra onde qualquer personagem, nomeado ou não, está na fila da cova. O que faz com que sempre exista uma tensão duradoura.

E pra completar, o f*p do autor brinca com isso. Ele mostra cenas incompletas, altera ordem de quadros, deixa pra dar satisfação depois ou simplesmente trucida alguém de forma brutal sem mais nem menos. Fazendo com que seja um mangá extremamente imprevisível e com drama no talo o tempo todo.

O que só piora quando ele começa a desenvolver os personagens e faz você gostar de cada um deles, independente das merdas que eles fizeram no passado. Alguns como Gantetsusai ok. Ele é arrogante e brutal, mas só foi sentenciado por ter destruído propriedade pública. Mas outros como a Yuzuriha são assassinos treinados com uma contagem de corpos nas costas, e mesmo assim você não deixa de amar eles. Entrando perfeitamente na ideia da obra, inclusive.

E nem mesmo os honrados Asaemon saem disso. Sagiri é uma decapitadora, Fuchi um dissecador de corpos, e alguns podem se enquadrar como fucking genocidas. Mas mesmo eles tem seu lado humano e por vezes me vi querendo perdoar tudo e torcendo por cada personagem. Com os monstros sendo o lado maligno é… cara… as vezes até eles eu tinha pena? O que na real é ótimo, pois mostra que não tem personagens rasos aqui.

E lógico, tem os que eu odeio. Acho que isso nunca vai deixar de ter em qualquer obra. Mas mesmo esses que eu odeio pra caralho são muito bem escritos e caem nesse trope da humanização. No fim me fazendo achar eles ótimos! Não no sentido de “quero como amigo”. Mas sim no de um personagem que faz a trama girar de maneira estrondosa. Um ponto que quase nunca consigo fazer as pessoas entenderem, haha. Mas aí vira e tão lá elas de amores com Sephiroth e Coringa, vai entender.

Enfim. O que quero dizer com tudo isso é que o mangá de Jigokuroku é fenomenal, e uma das melhores leituras que eu tive em muito tempo, justamente pelos temas, arte, personagens e todas essas reviravoltas dramáticas que não dá para prever. Um mangá foda daqueles que recomendo a todos que curtem ação com bons enredos. No fim sendo muito mais do que só mais um Battle Royale.

E antes que eu esqueça. Apesar das broncas com o anime, eu não considero ele ruim. Eu só queria detalhar o que acho que faz o mangá ser superior e eventualmente o anime faz algumas das alterações que vi como necessárias, ao mesmo tempo que ignora pontos fundamentais como as cenas de maior impacto e introduz novos problemas no meio da animação. É assistível, e ainda vai ser bom. Mas não consigo me colocar contra o mangá nessa escolha.

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